Se espreitarmos com muita atenção há um pequeno mundo entre outros dois mundos ao qual só chegam os mais atentos, os que não são sedentos... há muitos que por lá passam e saltam sem olhar esta pequena fenda...
René Magritte
Acordo..
Os olhos estavam baços... cerro-os, esfrego-os com veemência como quem quer penetrar além do atingível!
O teu rosto? pergunto-me e arrisco-me a requestá-lo nos breves instantes que se seguem...
Destapo todos os episódios, desobestruo todas as portas, escavo um beijo distraído, invado museus, corro por ruas e artérias, ingresso na cólera de um filme mudo.. nada!
Sinto um náufrago no peito, por instantes fico a boiar no infinito a consumir pirulitos por conta própria!
Este acordar carnívoro nos mornos lençois faz-me abandonar o chão, abala a realidade de todas as coisas...
Que agonia é esta? Que me segue os passos, que me espreita os gestos, que me assombra o corpo, que me acorda de noite e me grita de dia?
Rendo-me?
Cinco e meia da tarde, meia para as sete da hora antiga. Sento-me ao pé de mim para escrever, a caneta leva-me até ao último e unico andar do prédio, mais precisamente ao quarto vazio que mora dentro de mim!
Nesse quarto recheado de nada, noite após noite ouço um ruído que ensurdece o silêncio, um compasso proveniente de um relógio de parede que faz a soma dos dias como se de uma calculadora barata se tratasse.
Ao longo das quatro paredes brancas que me envolvem, estende-se a sombra imensurável de uma cadeira de baloiço que ainda se move...
No canto, amachucada e no chão, encontra-se uma folha descolorida, com palavras rasgadas e garatujadas de um dia mais colorido que aos poucos foi perdendo a tonalidade... já nada se lê! sobraram apenas as reticências e os "ses".
O vento que despreza a rua, entra sem pedir licença, entranha-se nas cortinas e desvenda o quotidiano, desenhos sobre a normalidade das pessoas que oferecem os "bons dias" umas ás outras... Chego-me à janela para ver!
Tropeço agora no tapete que outrora esteve estendido, bordado a fio de suspiro e estampado de imagens de momentos que me rasgam as defesas
Bocejo, fico enfadada, aconchego-me e preparo-me para passar mais uma noite em branco com receio de que os sonhos venham visitar-me e eu, por desleixo, esteja a dormir...
http://www.youtube.com/watch?v=UDorNilxPUY
Na liberdade da solidão, acordas do lado deserto da cama, é nesse lugar onde mais te encontras
Na multidão de desconhecidos pareces sentir segurança
Na estrada da vida sem mantimentos afectivos procuras a saída, fazes do amor um singular
De costas curvas carregas o luto dos dias que por ti passaram
Prenuncias palavras que te minguam o coração
Julgas-te confinado á "solitária" de nome vida, acordas e olhas o espelho com ar ameaçador e agressivo... fabricas um sorriso
Já nada te sacia... só a ti te procuras
As carências sao a bagagem que te move
Nenhuma reacção! ... e o silencio já soa a castigo
Gastas oxigénio aos poucos só para sentires o sufoco de que mascaras a ansiedade
A todo o custo, sem preço nem medida.. onde quer que esse caminho te leve
Pensas ter perdido esse tudo que não aceitas seres TU e tentas provar o amargo, não na boca mas no peito, que te trará a tão desejada vitória na luta constante contra os teus limites...
Eu perdi... e tu?
"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco"
Mário Cesariny
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