Tenho tudo aquilo que escrevi e tornei meu,
... tudo o que sou, o intervalo entre o passado e a esperança,
... saudades, tenho-as sempre, de ontem, de hoje e de amanhã,
Tenho o sono do meu sofá e a alavanca do querer... do crer,
... as tardes de sol, o que os outros dizem de mim e os ombros que permitem ouvir-me,
Tenho ausências, um dia de cada cor, e os feixes de luz que me entram no quarto pela manhã,
Tenho o sorriso, o choro, o bocejar e um encontrão na multidão,
... a ousadia do desejo e o pulso da sensatez,
... A distracção ocular, a sombra e o reflexo,
... A ambiguidade de parar e ver em vez de olhar e a ilusão de erguer castelos no ar,
... o fascínio de um beijo e a rigidez de um aperto de mão,
Tenho o exercício da benevolência subtil e da polidez agradecida, que todos devemos aos estranhos,
... as depressões das noites de domingo e a boa disposição das canções que recebo da rádio nas manhãs de segunda feira,
Tenho o sabor do café cheio, tomado no aeroporto, antes de partir e um chegar esperado,
... a repulsa ao embrutecimento, o mi de miúda, fraquezas e incertezas
Tenho as expressões vazias da mentira e nos olhos a verdade,
... dias sim e dias não, o aconchego de uma pequena palavra,
... os bons dias para o jardineiro e o croissant na mesa do fundo,
Tenho o correio de todos e as contas de sempre,
... os sentidos atentos e um esfregar de olhos ao acordar,
... o nada que é tudo
Respondo
Frida Kahlo
Deixa-me
Fazer-te canja de galinha, fazer-te rir e acolher-te com aquele abraço,
Deixa-me
Fazer-te reconhecer que um dia, quando fores velhota muito velhinha, quando o xaile já te pesar nas costas, celebrarás este tempo,
Deixa-me
Retribuir as macãs reinetas que um dia descascaste para mim, os dias que me afagaste o cobertor e me fizeste sentir que ali estavas,
Deixa-me
Usar o "tudo passa", essa expressão tão tua que um dia se fez minha, que me fez acreditar no outro e no outro dia que se avizinhava,
Deixa-me
imaginar-nos de mãos enrugadas, trôpegas e recontarmos pequenos retratos já distorcidos pelo tempo, episódias de percursos sinuosos e planos inclinados que outrora subimos lado a lado, puxando uma... pela... outra,
Deixa-me
Ter com quem queixar-me do reumático, dos Joanetes e das feridas mal curadas,
Deixa-me
Acreditar que nunca esperarei cartas tuas porque estarás sempre aqui!
Deixa-me
Usar palavras tuas e ouvir-te dizer "sou um pedaço de ti"
Deixas?
fotografias...
Rever cacos velhos, mãos e joelhos esfolados, sorrisos esboçados, pedaços de um livro, de uma história, rever-nos como a personagem principal, num enredo em que nos cabe a responsabilidade de escolher entre o sim e o não, o trilho de uma planície ou uma cordilheira.. cada alteração da rota
Num instante assalta-nos o conhecimento do real, a essência da identidade individual que depende da memória que vincula o passado ao presente, une o antes e o agora, combate o nada, o esquecimento e evidencia cada momento..
Reencontrar retalhos de nós, de sonhos prometidos, tudo! ali a cru! numa camada de material sensível à exposição luminosa, numa folha que transparece pedaços do que somos do que construímos, daquela que é a nossa face... nem sempre o nosso eu! Uma linguagem nem sempre notória.. dois mundos que se tocam pela linguagem denotativa e conotativa.. um esconde esconde a descoberto, ali representado!
Folhear a nossa vida que se estende para além da vista, ver o amar e o amor de quando em vez desencontrados, amigos de sempre, um rasgar de sorrisos de ocasião, para aquela luz que dispara e que nos separa daquele dia! daquele preciso dia, o menos importante que fica soletrado naquele fragmento do tempo..
Um dia... os acontecimentos terminam e as fotografias permanecem, atravessam as malhas do cansaço e mostram-nos quem fomos e não somos!
Wiener Staatsoper
Quero salvar-te do meu esquecimento!
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