" Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Por causa da casa e das contas da lavandaria.
Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em «diálogo». O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornam-se sócios. reunem-se, discutem problemas e tomam decisões.
A paixão. que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam «praticamente» apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio ao amor puro e duro, ao amor cego, ao amor estúpido, ao amor doente, ao único amor verdadeiro que há.
Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão coberdes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros, malta do « tá bem, tudo bem», tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banancices, matadores do romance, romanticidas!
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma judinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso «jeitinho sentimental»!
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos.
Por onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja, foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor! é essa beleza, é esse perigo!
A vida às vezes mata o amor. A vidinha é uma convivência assassina!
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição!
O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente.
O amor é a nossa alma. è a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não comprende.
O amor é uma verdade. è por isso que a lusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar. O coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para se perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz.
Não se pode ceder. Não se pode resistir.
A vida é uma coisa, o amor é outra.
A vida dura a vida inteira, o amor não.
Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também"
Miguel Sousa Tavares. (Obrigado a quem partilhou este texto fantástico comigo)
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