Carta a mim mesma.
Como me dirijo a mim própria sem o impessoal "eu", sem o abuso do "tu" e a inconveniência do "você"?... não sei por onde começar, depois de tanto tempo o lápis enferruja, as linhas tornam-se tremulas e os pensamentos fogem em todas as direcções, encobertos nos esconderijos mais inalcançáveis, como se jogassem às escondidas por detrás de um sorriso maroto.
Ora bem... e chega uma tosse, como que a preparar a garganta, como se as palavras conduzissem nessa estrada. Ergo os ombros, aliso os cabelos, perco tempo, perco-me antes de começar.
Mas como?... é assim que dou início. Como é que se pode ter a sensação que se tem uma vida, esse prédio que se constrói andar por andar, porta por porta... sem o habitar? Ter uma vida e não habitar nela? como?
Já paraste para pensar nas vezes que a vida te escapa, foge ao teu controlo ao ponto de seres como uma projecção que regressa ao prédio de quando em vez?
... e assim as linhas se vão cosendo, desordenadas, sem um fio condutor, de uma forma tão confusa, num acumular de heterónimos, narradores, destinatários, autores e remetentes, ora de ficção, ora de vida real, numa dança em que ambas se movem e rodopiam dias seguidos sem dar as mãos, mantendo sempre, sempre a mesma distância uma da outra, centímetro a milímetro.
Deve haver, com toda a certeza, um corredor secreto que as una, uma passagem subterrânea que me permita construir a minha própria narrativa, encontrar-me dentro dessa casa. Mais do que uma história épica de poder, é uma história de posse de mim por mim mesma.
... faço uma pausa.
Alguém deixou a porta aberta, reparo, pergunto-me: Queres entrar?
Lá dentro espera-me uma grande sala, mas o espaço parece preparado, cuidadosamente à espera que chegue mais alguem.
Sento-me e procuro ficar de costas direitas (corrijo a minha postura, duas ou três vezes, teimosamente) e dou comigo a contar as cadeiras, à espera!... é assim que estou, é assim que fico, sem possibilidades que ofereçam vida real à ficção. Por quanto tempo? Deves respirar fundo, encher o peito de ar e antes até de agir, decidir, se queres ficar ou partir... não te deixes levar por essa corrente, não te deixes ficar pela solidez das paredes. Senta-te, pensa, aquieta o teu corpo..
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