Ás vezes é dificil não escrever com as palavras que contam, o bisturi conta e corta, queremos proteger os sentimentos... protegê-los do frio, da erosão do tempo, das pessoas, dos ditos e mexericos, do poder da lingua e de lhes acrescentar isto e aquilo e da tendência da lei da gravidade, do dote de os esvaziar igual balão que se perde no ar...
Ás vezes é dificil organizar os próprios sentimentos e traduzi-los em caracteres, arrumá-los em frases, metáforas e ditongos que contarão histórias e já se sabe: "quem conta um conto acrescenta sempre um ponto", afinal é essa a beleza de ler uma carta, de ouvir uma lenda, de olhar uma tela. As palavras, essas, são as mesmas, o código é universal com poucas ou pequenas variações e conspira contra, ou até, talvez, por vezes a favor de quem o escreve... pode ser de algodão, pode ser agressivo, pode ser a lápis de carvão ou pode mesmo ter a melhor intenção, mas a sua compreensão nunca será uma ciência exacta. Existiria uma segunda matemática, outra geografia, outra linha de montagem que roubaria à escrita a delícia que é mantê-la em segredo.
... e ainda há outras vezes em que as palavras são só nossas e ficam arrumadas no caderninho de linhas direitas e a fio como que segredos que não queremos contar!
Parece-me bem para (re)começar...
Carta a mim mesma.
Como me dirijo a mim própria sem o impessoal "eu", sem o abuso do "tu" e a inconveniência do "você"?... não sei por onde começar, depois de tanto tempo o lápis enferruja, as linhas tornam-se tremulas e os pensamentos fogem em todas as direcções, encobertos nos esconderijos mais inalcançáveis, como se jogassem às escondidas por detrás de um sorriso maroto.
Ora bem... e chega uma tosse, como que a preparar a garganta, como se as palavras conduzissem nessa estrada. Ergo os ombros, aliso os cabelos, perco tempo, perco-me antes de começar.
Mas como?... é assim que dou início. Como é que se pode ter a sensação que se tem uma vida, esse prédio que se constrói andar por andar, porta por porta... sem o habitar? Ter uma vida e não habitar nela? como?
Já paraste para pensar nas vezes que a vida te escapa, foge ao teu controlo ao ponto de seres como uma projecção que regressa ao prédio de quando em vez?
... e assim as linhas se vão cosendo, desordenadas, sem um fio condutor, de uma forma tão confusa, num acumular de heterónimos, narradores, destinatários, autores e remetentes, ora de ficção, ora de vida real, numa dança em que ambas se movem e rodopiam dias seguidos sem dar as mãos, mantendo sempre, sempre a mesma distância uma da outra, centímetro a milímetro.
Deve haver, com toda a certeza, um corredor secreto que as una, uma passagem subterrânea que me permita construir a minha própria narrativa, encontrar-me dentro dessa casa. Mais do que uma história épica de poder, é uma história de posse de mim por mim mesma.
... faço uma pausa.
Alguém deixou a porta aberta, reparo, pergunto-me: Queres entrar?
Lá dentro espera-me uma grande sala, mas o espaço parece preparado, cuidadosamente à espera que chegue mais alguem.
Sento-me e procuro ficar de costas direitas (corrijo a minha postura, duas ou três vezes, teimosamente) e dou comigo a contar as cadeiras, à espera!... é assim que estou, é assim que fico, sem possibilidades que ofereçam vida real à ficção. Por quanto tempo? Deves respirar fundo, encher o peito de ar e antes até de agir, decidir, se queres ficar ou partir... não te deixes levar por essa corrente, não te deixes ficar pela solidez das paredes. Senta-te, pensa, aquieta o teu corpo..
Como começar uma história sem a celebre frase “Era uma vez”?... Esta não é mesmo uma tarefa fácil, descrever ou traduzir por palavras a história de alguém, sobretudo quando se trata de um alguém que nos é muito querido, um alguém que tem o mesmo sangue que nos corre nas veias, se as palavras tivessem avesso tudo seria muito mais fácil.
Bem, e sem dar conta já dei inicio á tarefa!
Era uma vez, era uma vez… e assim já são duas!... uma bebe que nasceu dia 21 de Abril de 1992, nessa primavera já eu tinha 13 anos e nesse dia (assim de um dia para o outro), precisamente nessa data, passei a ter uma função a que os familiares chamavam “irmã mais velha” e ser ter um curso ou workshop depressa aprendi a mudar fraldas, fazer biberões de leite e mais um sem fim de cuidados que envolvem a vida de um bebé.
Chama-se Joana, a menina que tratou de me tirar, de um dia para o outro o lugar de filha única para o lugar de “irmã mais velha”… lindo serviço! Não se faz!
Levou algum tempo até lhe perdoar!... Especialmente porque até mesmo depois de crescer era eu a gata borralheira que arrumava o quarto.
Depois de muitas e muitas noites a desejarmos “sonhos de todas as cores uma à outra”, o tempo passou e com ele cresceu também a amizade e a cumplicidade entre nós e agora que a conversa está a tomar um tom mais sério é altura de dizer “gosto muito de ti miúda!”. A miúda, de tanto comer (pois é adepta de um bom petisco e do vitória de Setúbal também) tornou-se numa valentona capaz de defender a “mana mais velha”, muito mais enfezada!
Em pouco ou nada somos parecidas, ninguém nos diria irmãs ou sequer primas, tal como a canção do Marco Paulo “uma é loura e a outra é morena”, os nossos pais têm dois amores!
E agora que a tarefa está a mais de meio de acabar é tempo de escrever umas linhas no diploma da melhor irmã do mundo que me ensinou a partilhar, a cuidar de um nenuco de verdade, a dizer “não venhas tarde”, a recomendar “não te esqueças de estudar”, mas acima de tudo ensinou-me a gostar como não se gosta de mais ninguém!
Entregue ao mistério de mim mesma, aquele que tantas vezes sinto presente e que raramente confesso aos outros. Sentada ao fundo, oferecida a um café de chávena longa, rendida a um livro, pousada num lápis... no miradouro de mim mesma.
Aqui sim, não há um caminho, as ruas não têm nome, não existem mapas, esquinas ou desfiladeiros. O deserto é banhado pelo som do silêncio que é irrompido de lés a lés pelo ruído da areia de toca o cume das dunas e se espanha no horizonte...
Uma vela, apenas uma vela fecha e une o círculo de seis copos de "whisky berbere", o chá do deserto, no chão, iluminado pelas estrelas do tecto do mundo que começa e acaba aqui!
Não sei se é o princípio ou o fim, sei que há um encontro com o nada que me enche de paz, o largar de todas as fronteiras do conforto e da imensidão tremenda dos excessos dos lugares comuns.
Esta noite sinto-me confortavelmente coberta por um azul escuro, aqui onde o silêncio não mente, é tão íntimo que não pode ser representado, perdido ou achado, tão envolvente que não pode ser rasgado nem apagado... é ele que nos une enquanto seres e nos prende à eternidade.
Carta do deserto:
"Respondendo-te...
Que o deserto te mude, chegas-me tu por palavras assim.
De certo mudará um pouco daquilo que sou, tal como o fizeram todos os lugares por onde já passei mas... há coisas que só se encontram dentro de nós e esa procura, ainda que o deserto e o seu vazio e o silêncio sejam um lugar de excelência que convidam à paz e à reflexão, é um caminho contínuo que passa também pelo aceitar e bem estar com a pessoa que somos." tee
Esta cidade labirintica, de ruas sujas e estreitas tinha, com toda a certeza, contas passadas a acertar connosco!
Depressa se tornou urgente abandonar este lugar, com ou sem perdões, rancores ou histórias amargas...
Aqui, as crianças menores de 5 anos parecem ser o maior sinal de perigo, roubam, correm e desaparecem por ruelas onde mais ninguem passa.
Uma questão impõe-se: como descrever uma taça de mel como a do pequeno almoço?... sem dizer "merda" e sem uma escrita by Margarida Rebelo Pinto que lhe chamaria delicadamente "falta de higiene"? como dizer "porcaria" de uma forma literária?... sem ofender o leitor mas provocando-lhe o nojo e a repugnância que senti...?
A fome perde-se em cada corredor da medina, o calor apodera-se do corpo, nesta cidade situada entre os terrenos férteis do Sais e as florestas do Médio Atlas... a mais antiga das cidades imperiais de Marrocos, declarada património mundial da humanidade.
... e se há dias de luta, também os há de paz, dias para atirar pedras e dias para juntá-las!
Apesar dos desajustes, episódios e desamores há sempre boas mãos que nos chegam, cantos que nos acalmam ... um bom lar onde dormir, um prato de fruta para pacificar o estômago, um estranho que nos conforta!
.. a vida é uma estrada de lições, de altos e baixos, perdões, fé e medos! Não há caminho que não leve a outro nem tempestade que que não traga o sol. Assim se sucedem os dias, as estações e todos os ciclos de semear e colher!
Não poderia imaginar que aqui, à porta de Africa, a norte, colheria um sonho azul...
Assim nos recebe Marrocos, neste lugar de manto azul, de tons que descem e sobem o índigo...
... um manto que cobre as janelas, as casas e entradas por onde se espanham
passos de pessoas.
Deixo saudades por todos os cantos, saudades que me enchem de desejo de
levar todas essas imagens e sensações comigo...
Oferecê-las, de mão beijada, a quem mais gosto, enviá-las por correio como
se pudesse retratá-las e fechá-las num envelope branco.
Resta-me encher o peito de ar, respirar cada esquina e rosto com que me encanto!
Acordo ... num ambiente em que estranhos, vozes, nacionalidades se cruzam e se fundem num clima de partilha, sinto-me em casa, penso.
É uma morada agradável o numero 16, com hospedes e proprietário à mistura.
Somos recebidas por uma cara de sono, ainda com vincos do lençol, provas de uma noite pouco ou nada dormida. Depressa se prontifica a arranjar-nos um quarto. São sete da manhã e o clube de futebol local ganhou na noite anterior, a cidade está repleta de copos e vestígios de fiesta por todas as ruas da parte vieja ... tresanda a alcool, ainda se ouvem canticos de vitória de vozes torcidas... a noite vai longa, quase manhã.
A casa veste-se de um cheiro a café que percorre o corredor até aos quartos, há barulhos de gente na cozinha, chilelam passos pelo chão incerto deste andar que não tem mais de 5 quartos, mas tem uma alma... respira-se amizade, união, neste mundo de sentimentos em vias de extinção.
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